sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Meus últimos dois tostões ao Partido dos Trabalhadores


racha do pt
Tenho vontade de pontuar com precisão esse assunto há algum tempo. Tratar do contraste entre o respeito que tenho pelo papel histórico do Partido dos Trabalhadores e meu desconforto ante ao PT atual. Essa massa amorfa, mergulhada na soberba do fisiologismo, que ainda se vale daquela referência histórica para gozar de uma blindagem ante a qualquer crítica.

Pra começar, preciso frustrar as expectativas do antipetista visceral. Aquele que pensa em vir aqui pra me ver usando termos cunhados por um Reinaldo Azevedo da vida. Não é o caso, não é isso que farei, nem nesse texto nem num próximo. Tenho uma reputação a zelar. 

Mantenho uma tremenda desconfiança sobre esse perfil do antipetista nervoso, chiliquento, que sai esbravejando termos como “petralhas”, falando em mensalão como se fosse a obra inaugural da corrupção no Brasil ou mesmo “o maior esquema” de corrupção da história. Até porque é esse tipo de crítica alienada e insipiente que fortalece a imunidade de um PT que merece, e requer, uma crítica mais apurada.

Ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer avanços em políticas econômicas e sociais operados pela mudança de prisma na passagem do governo tucano para o governo petista, é chegada a hora de perceber que a fórmula estagnou, conforme já se podia prever que iria estagnar.

Sim, o governo Lula tirou o país de um caminho para a catástrofe. No plano internacional, substituiu a lógica do aprofundamento na subserviência por uma busca de relações bilaterais com outras nações em desenvolvimento, o que serviu para aquecer e para proteger nossa economia enquanto grandes potências passavam por crises profundas. Aqui dou meu primeiro tostão.

Além disso, no campo das políticas sociais, medidas de simples assistencialismo serviram para retirar um grande número de famílias da miséria absoluta, por efeito dos programas de bolsas que uma oposição raivosa passou a demonizar. Aqui dou o segundo e último tostão.

Por outro lado. o engomadinho que demoniza programas assistenciais e acha que o faminto pode esperar enquanto se pensa numa saída definitiva e genial para a fome é o tipo de figura que reforça a blindagem do PT, que possibilita ao partido o uso do argumento de que toda a oposição é preconceituosa e elitista.

Na economia, é preocupante observar que as vantagens advindas da quebra de paradigma na política internacional vêm se esgotando e que o país não aproveitou a bonança para cuidar de desenvolvimento de fato. O tal PAC não mostra a que veio no sentido de desenvolver infraestrutura, a produção científica não é incentivada. O país não prepara caminho para o progresso de fato.

As políticas para a educação não passam de gambiarras para mascarar estatísticas (ENEM, cotas, etc) sem que o quadro calamitoso da escola pública seja reconhecido e enfrentado. Os problemas da universidade são tratados apenas pelo viés quantitativo, do aumento do número de vagas. Enquanto isso, o PROUNI é um projeto de privatização silenciosa do ensino superior, aplaudido pelo Movimento Estudantil que sempre defendeu “educação pública e gratuita de qualidade”. Afinal, a UNE faz parte da claque do aplauso incondicional ao governo.

Na saúde, pra quem gosta de números, basta mencionar que o SUS perdeu 42 mil leitos entre outubro de 2005 e junho de 2012. Faculdades de medicina no país enfrentam o dilema entre o sucateamento ou a privatização dos hospitais universitários.

Enquanto se implementaram programas assistenciais de urgência e a economia cresceu de maneira modesta, mas estável, criando mais vagas de trabalho formal, a grande “transformação social” da qual o PT gosta de se vangloriar se baseia na mudança de padrões de consumo do trabalhador, que agora pode comprar eletro-eletrônicos vindos da China graças a uma grande capacidade de endividamento.

Ou seja, num quadro em que pouco ou nada se faz pela saúde ou pela educação, a maior vitória esbanjada pelo governo consiste em propiciar o consumo de tranqueiras pelo trabalhador que mantém seus filhos numa escola de quinta categoria, numa família em que, se alguém adoecer ou sofrer um acidente, terá de enfrentar o calvário do SUS, mas tem TV de LCD e paga por ela uma prestação a perder de vista.

Nesse quadro, a maior parte do “progresso” do qual o governo se vangloria é uma ilusão. Será possível que a utopia progressista almejada pelo Partido dos Trabalhadores se limita a uma réplica fuleira do “american way of life” falsificada no Paraguai ou trazida da China, comprada num crediário com parcelas a perder de vista?

Enquanto isso, na economia, seguimos sedimentando nossa vocação para sermos a seção hortifrútis do mundo globalizado. Não se fala em incentivo à pesquisa científica e o país se deu ao luxo de passar o todo o segundo semestre de 2012 com as universidades federais paradas porque o governo “não teve tempo” para negociar com os professores e técnicos em greve.

Ao contrário do antipetista visceral, reconheço a grande importância que teve o Partido dos Trabalhadores na vida política do país. O PT, enquanto grande partido e enquanto referência de esquerda, serviu para trazer à baila discussões que não entrariam em pauta por obra de nenhum outro partido. Ou pelo fato de a velha direita reproduzir a mesquinharia de uma elite retrógrada, ou pela menor expressividade dos demais partidos de esquerda.

O problema é que aquele PT não mais existe. O que está aí é um partido que, pela via do pragmatismo, enveredou no fisiologismo e perdeu a identidade há bastante tempo. Enquanto isso, continua gozando dos benefícios daquela referência histórica que não mais existe.

O resultado é um PT que virou puta, que abraça o Maluf em São Paulo, que está em campanha coligado à Roseana Sarney no Maranhão, mas que se faz de donzela virgem na hora de criticar as alianças e coligações de qualquer outro partido dito de esquerda no país.

Para piorar, a trupe do antipetismo nervoso, que vai da dona de casa leitora da Veja, passando pelo “internauta” assíduo do blog do Reinaldo Azevedo, chegando até a ala raivosa e perigosa das viúvas da ditadura militar, ajudam na construção de uma blindagem para o PT segundo a qual toda e qualquer oposição é preconceituosa, elitista, e golpista. O enorme barulho feito por esse manicômio que é a direita brasileira acaba por abafar qualquer crítica que se pretenda fazer ao governo.

Como já tratei em inúmeros outros textos aqui, boa parte das lágrimas derramadas por uma oposição patética que acusa o PT de conduzir inquebrantável projeto do hegemonia representam o choro de grupos desprovidos de capacidade crítica, para a qual o senhor José Serra e o falecido PSDB podem ser tomados como referências máximas.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

E os novos ventos do STF sopraram pra longe a CPI do Cachoeira


cpi do cachoeira22

Não obstante o choro de uns e a alegria de outros, o julgamento do mensalão tem representado um marco na história das nossas instituições. Pela primeira vez, o STF mostra pulso e parece disposto a julgar “doa em quem doer”, não importando quantos engravatados devam acabar no xilindró. Esse recado foi ouvido no Congresso, e já fez com que o espírito de corpo tomasse conta da casa, servindo para dar um novo rumo à CPI do Cachoeira.

Da parte dos trabalhavam a versão de um PT messiânico sendo levado ao Calvário pelo atroz Joaquim Barbosa, tomado como um implacável defensor dos interesses elitistas do império, a ladainha que se repetia era “e a CPI do Cachoeira?”, “e o mensalão tucano?”. O fim dessa lamúria se deu de maneira inusitada, com o próprio PT orquestrando no congresso o encerramento da CPI que investiga o esquema do bicheiro antes que as investigações recaíssem sobre políticos.

Parece uma relação direta de causa e efeito. O recado dado pela mudança de postura do STF chegou ao Congresso e, com base nele, certas “desavenças” foram aplacadas e entrou em ação o espírito corporativo. O “deixa disso” generalizado é apenas o esperado diante do aviso: o que antes não passava de um teatro agora tem mais chances de botar corrupto efetivamente em cana.

Uma ala do PT ainda é favorável à prorrogação da CPI, para que ela chegue ao tucano Maconi Perillo, governador de Goiás, mas com o avanço dos trabalhos, também deveria falar Luiz Antonio Pagot, ex diretor do Dnit, que considerou anti-ético um pedido que lhe foi feito pelo PT durante a última campanha presidencial.

A verdade é que a CPI do Cachoeira não serve como campo de batalha pra ninguém, porque as baixas para todos os lados seriam muito numerosas. Diante de um STF que parece mais disposto a mandar político pra cadeia, o desfecho mais óbvio é o que estamos assistindo. Tudo termina com os mesmos tapinhas nas costas entre aqueles que estão com seus rabos igualmente presos nas ramificações do esquema do bicheiro.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Moroni Torgan, “voto útil” e você na massa de manobra


moroni torgan
De maneira intrigante, as eleições para prefeito em Fortaleza repetem uma mesma dinâmica há bastante tempo. Do início ao fim, um script que não falha. Moroni Torgan parte na frente, mesmo contando com a mais gigantesca rejeição. É inevitável que as pessoas levem em conta a “ameaça Moroni” ao escolherem seus candidatos, e isso tem sempre o mesmo impacto no resultado das eleições, Moroni despenca após ter “tangido” o voto útil em determinada direção. 

O curioso é que, apesar de o mórmon "valentão" largar sempre com grande vantagem, quem é o verdadeiro eleitor dele? Ninguém sabe, ninguém viu. Ou melhor, eu mesmo vi uma vez um carro com um adesivo dele e um outro da Ação Integralista Brasileira (AIB), mas Fortaleza não é a Alemanha de 1932 pra ter eleitores em massa simpatizando com esse avanço fascista. Isso não existe, assim como não existe no povo empatia pelo sujeito que possa colocá-lo naquela liderança inicial. É o que fica sempre demonstrado ao longo do processo.

O fato é que a presença da “ameaça fascista” no topo das pesquisas por um bom tempo, na fase inicial das campanhas, acaba tendo por efeito fixar no eleitorado a ideia do voto útil. O voto pra tirar o fascistão de lá. E quem é o candidato escolhido para tanto? O mais forte, o que conta com aquela campanha milionária, o que é alavancado pelo repulsivo uso da máquina administrativa para fins eleitoreiros. Qualquer um dos dois que, igualmente, cumprem com esses quesitos. No presente caso: Elmano de Freitas (PT) e Roberto Cláudio (PSB).

Por algum tempo, analisei apenas como curiosa essa manobra de inversão realizada pelo Moroni, de largar na liderança e, invariavelmente, afundar. Hoje a tomo como suspeita. Não desconfio que ele lance candidatura apenas para isso. Desconfio é que os institutos de pesquisa venham usando sua caricata presença de “bicho papão”, forjando sua liderança inicial para evitar grandes variações no resultado das eleições.

Isso porque os investidores das grandes campanhas, as que tiraram o “bicho papão” do segundo turno (onde ele talvez nunca tenha estado) são ou os mesmos, ou igualmente fortes para que possam realizar esse jogo de bastidores. A mamata das empreiteiras com as presumíveis licitações de cartas marcadas, essa desgraça engendrada pelo nosso modelo de financiamento de campanhas, só fica ameaçada se for eleito um “azarão”. Com qualquer um dos candidatos oficiais, o retorno do investimento milionário em campanha fica assegurado.

Ao mesmo tempo, colocar um “bicho papão” com uma rejeição gigantesca como líder inicial das pesquisas é uma maneira muito eficiente de manobrar o “voto útil” para fortalecer os candidatos situacionistas e obstar o sucesso de qualquer candidatura mais modesta, que represente um risco de ruptura com os esquemas em andamento e com a imundice já reforçada pelos volumosos patrocínios de campanha. 

Resta saber por quantas vezes essa mesma cena ainda se repetirá. Quanto tempo levará para que esse jogo seja manjado. Se estiver em Fortaleza em 2016, à altura das eleições municipais, tentarei trazer novamente à tona essa discussão, usando as redes sociais. Talvez com isso eu possa cumprir um papel mais interessante do que o de simplesmente declarar apoio a um candidato. E meu candidato, pode ter certeza, nunca é o “dos esquemas”, nem nunca será. Pra mim, esse agigantamento fascista que nos mostram inicialmente as pesquisas, simplesmente nunca existiu.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Joaquim Barbosa, sem querer, seduziu a direita manicomial


joaquim barbosa

A última atração no freak show da política brasileira é essa aglutinação da milicada saudosa da ditadura em torno do ministro Joaquim Barbosa, como se o homem fosse se animar em virar aliado político deste “peculiar” setor do espectro ideológico, que eu costumo chamar de “ala manicomial” da nossa direita. Não todo o contingente das Forças Armadas, que tem bons democratas, mas aquela velha "turma", sempre com o mesmo papo.

O general José Elito Carvalho Siqueira, muito solícito, escalou proteção do exército para o ministro, tomado simbolicamente como um herói nacional no processo do mensalão. Isso sem que houvesse qualquer indicativo de ameaça contra Barbosa. Parece que escalar homens armados pra montar vigília na casa de alguém é uma “gentileza”, na cabeça desse pessoal, feita como quem manda uma garrafa de vinho de presente a um amigo.

Essa é a pérola que circula pelas redes sociais. 

Pelo que sei do Joaquim Barbosa, da sua formação e das suas orientações filosóficas, o homem deve estar num desconforto tremendo com a situação. Age profissionalmente movido pelas convicções que lhe possibilitam a análise do caso e com base, sobretudo, na formação jurídica de quem dedicou a vida ao Direito Constitucional e de quem prima pela observância à Constituição.

Não é o tipo de sujeito que vai ser seduzido por aquele “peculiar” grupo que fica salivando diante de qualquer ensejo pra tornar a ameaçar a democracia nesse país. Se é pra isso, escolham outro. Quem sabe o Gilmar Mendes. O Barbosa não vai! Falando nisso, por que mesmo o Gilmar anda tão quieto nessa história de mensalão, hein?

Imagino a situação do Barbosa agora e lembro dos motivos pelos quais eu, mesmo em momentos nos quais teria motivos para bater de frente e bater forte no PT, acabo optando por "pegar leve". Não me convém que a tal ala manicomial olhe pra mim como possível aliado. Ganhar a simpatia política dessa turma é um constrangimento pelo qual não desejo passar, daí imagino a saia justa em que se meteu o ministro, que tá ali apenas fazendo seu trabalho.

Está na hora da política brasileira amadurecer, de criar alternativas dentro do cenário democrático e de virar essa página desgraçada da nossa história. Ao mesmo tempo em que o PSDB acabou-se porque é incapaz de fazer oposição com inteligência crítica, quem aqui e acolá sobe no palanque da oposição é essa turma que range mais os dentes do que fala.

Foi por isso que as últimas eleições presidenciais foram um dos episódios mais imbecis da nossa história. Quando iniciaram-se as discussões, quem estava à frente da oposição era o tal Índio da Costa, delirando sobre as FARC, sobre o Foro de São Paulo e sobre todas as teorias de conspiração comunista que habitam as fantasias dessa ala manicomial da direita brasileira. O PSDB calado, só batendo palma pro doido dançar.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Espírito republicano sem altruísmo presumido


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O brasileiro parece ter dificuldade para desatrelar o espírito republicano de uma dose elevada de altruísmo. A necessidade de ver uma ligação entre uma coisa e outra pode turvar nosso raciocínio político e nossa capacidade de analisar os candidatos, os grupos a que pertencem, os interesses que representam e até suas propostas.

Essa ligação, existente no nosso imaginário, condiciona os discursos e nos força à generalização da hipocrisia. Qualquer candidato precisa se apresentar como aquele sujeito que está abrindo mão de sua vida privada para, de maneira sacerdotal e abnegada, dedicar-se a cuidar da coletividade. O problema é acentuado pelo populismo que norteou e ainda norteia muitos discursos.

Trazendo o tema para o campo da sobriedade, deveria ser mais fácil entender que um homem pode se interessar pela vida pública também para se realizar profissionalmente, dando melhor aproveitamento a suas aptidões. Esse tipo de realização, impulsionada um pouco pela boa dose de vaidade que cada um de nós carrega, direciona escolhas profissionais e é capaz de arrancar bastante empenho.

Estar inserido na atividade com que se identifica, onde pode trabalhar com paixão, talvez não seja a mais comum das ambições num mundo comandado pela caçada ao dinheiro, mas é uma busca que marca bastante as lutas de alguns homens. E não há altruísmo nisso. Trata-se de fato de uma busca bastante individualista, embora possa ser enfeitada com algum romantismo, o que não acontece com a simples busca do enriquecimento.

Por outro lado, parece imperar um simplismo conforme o qual há apenas dois tipos de homens, o ambicioso caçador de fortuna e o altruísta, descendente direto da Madre Teresa de Calcutá. O primeiro seria um corrupto inato e sobre o segundo recairia a legitimidade para fazer política pensando efetivamente na coletividade, atento aos ditames do espírito republicano.

Acredito que a ambição desmedida faz o corrupto, mas não acredito no descendente da Madre, até porque ela não deve mesmo ter tido filhos. Porém, há outros sonhos que alimentamos, entre eles o de dar plena vazão a nossas potencialidades, de sentirmo-nos bem aproveitados intelectualmente, de estarmos em contato com nossas paixões, que podem inspirar um bom político que não seja necessariamente um abnegado altruísta.

Claro, um mandato amplia contatos, pode melhorar naturalmente a posição social do candidato sem que esse se mostre um corrupto, sem que ele dê uma banana ao enigmático espírito republicano. Isso é reprovável? Que profissional, de qualquer outra área, não gosta de ascender em sua carreira?
Acabar com essa ingenuidade sobre o político altruísta ideal pode ajudar na escolha de bons candidatos.

Não quer dizer que cada um faça política buscando apenas o melhor para si, pois isso, em sentido amplo, é corromper-se. Quer dizer apenas que é possível haver um político profissional que pensa em realizar-se profissionalmente na política e esse homem não é necessariamente um bandido e nem precisa ser um santo.

Essa visão binária, maniqueísta, é uma das fontes da nossa cegueira, da nossa incapacidade de interpretar os processos numa democracia representativa.

Tocando no básico, a política deve ser feita tendo em vista os assuntos e interesses da coletividade. Cada um representa mais precisamente os interesses daquele grupo ou classe social à qual está mais intimamente ligado, que inclusive lhe confere apoio político. Essa é a natureza do processo democrático.

O que importa, em termos de leitura da realidade, é justamente identificar os interesses que representam os candidatos com base no contexto em que eles estão inseridos, nos grupos com que se relacionam. A simpatia ou antipatia com um candidato ou com um projeto, pedindo alguma licença ao Carl Schmitt, deve se basear nisso, e não na eterna espera do candidato ideal, desmedidamente altruísta.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O problema da universidade “estilo ENEM”

burro

Com todas as universidades federais em greve, vou por aqui adiantando minhas leituras em bioquímica. A ideia é facilitar minha vida durante o básico no curso de medicina, além de preencher meu tempo enquanto dura essa greve eterna. Como calouro da época de transição entre o vestibular tradicional e o ENEM, esse estudo introdutório me leva constantemente a refletir sobre a recente mudança no processo seletivo. 

A discussão sobre o ENEM como modelo de seleção para ingresso na universidade foi superada. Construiu-se um consenso de que os críticos do modelo são engomadinhos elitistas, defensores de um sistema meritocrático calibrado precisamente para manter seus privilégios de classe. “Case closed”. O problema é que a ciência acontece num campo e as discussões político-ideológicas em outro.

O que define a complexidade da informação com que deve lidar um estudante disposto a construir uma formação científica sólida não é o MEC, não é o ministro que acha que pensar dói demais e que devemos poupar o jovem desse sofrimento. Quem determina a complexidade da informação a ser assimilada e processada pelo estudante é o desenvolvimento da ciência, e esse acontece, para o bem ou para o mal, bem longe da vontade do ministro, porque ele se dá globalmente, nem mesmo está restrito ao Brasil.

É indesejável que se forme (ou que seja aumentado) um abismo entre o que sabe um estudante formado no Brasil e um formado no exterior. Se um livro é adotado para bioquímica durante o básico nos cursos de medicina, no Brasil e no mundo, é importante que os calouros ingressem nas faculdades capacitados a estudá-lo, portando os pre-requisitos que aquela leitura exige.

Como um candidato que observou a transição entre os modelos e que está agora em contato com o material adotado na faculdade de medicina, afirmo taxativamente: o tal “estilo ENEM” não capacita ninguém a entender o que está lendo num bom livro de bioquímica. O problema aqui não é a imbecilização geral do provão, o problema é a eliminação das provas específicas da segunda fase, que no modelo antigo forçavam os candidatos a um maior aprofundamento nas disciplinas diretamente relacionadas ao curso escolhido, no caso, química e biologia. 

No exemplo do livro que tenho usado como referência, o “Princípios de bioquímica”, do Lehninger, embora tenha uma grande preocupação com a didática, o autor não volta tanto ao “beabá” para ensinar química orgânica a um leigo. A leitura sobre reações nucleofílicas, sobre substituições radicalares e sobre os mecanismos dessas reações é satisfatória para quem traz alguma bagagem sobre os assuntos, mas imagino que seja insuportavelmente inacessível para quem nada trouxe nessa bagagem. Isso para ficar num único exemplo pinçado de um livro de mil páginas.

O problema é que o vestibular, “demonizado” como um carrasco a trucidar as pobres criancinhas do Brasil, não era apenas uma porta fechada no acesso à universidade. Ele era uma baliza a tentar garantir que os candidatos aos mais diversos cursos se preparassem, de alguma forma, pro que devem enfrentar na universidade. Se era ruim com ele, muito pior estará sem ele.

O descompasso criado pelo ENEM forçará uma descida no nível de exigência em muitas das cadeiras na universidade. Para ficar no exemplo aqui utilizado, não há tempo hábil e nem material disponível para ensinar um “beabá” de química e biologia aos alunos das cadeiras de bioquímica nos cursos de medicina. Da mesma maneira, presumo que se tenha criado um abismo entre o que é cobrado em matemática e física para os cursos de engenharia e os pre-requisitos da formação básica de um engenheiro, de forma bem análoga.

A gambiarra feita pelo MEC no processo de seleção deverá refletir numa “gambiarra” dentro dos cursos, que deverão descer o nível de exigência no sentido de se adequarem ao aluno “estilo ENEM”. Nossa política é feita dessa maneira, com um encadeamento de gambiarras para que nunca tenhamos de enfrentar os problemas centrais. Mas quem é louco para se preocupar com a qualidade da formação, quando o governo não se preocupa sequer em resolver a greve e devolver a universidade ao seu funcionamento?

terça-feira, 31 de julho de 2012

O que não entendo no caso Vítor Suarez


vitor suarez

De ontem para hoje as redes sociais foram tomadas de indignação pela soltura dos acusados de espancarem violentamente o jovem Vítor Suarez. O rapaz foi vítima de violentas agressões por tentar salvar o mendigo que estava sendo espancado antes dele. Nesse caso, posso entender boa parte do que vem acontecendo, mas tem um pedaço da história que me escapa à compreensão.

Entendo a parte jurídica, embora considere que muito precisa ser revisto em matéria de direito penal por aqui, tanto na esfera material quanto na processual.

O desenrolar do processo leva à revolta de quem o observa, que advém do tratamento dado à figura do "réu primário", tratamento que dá quase o direito de cada um cometer pelo menos um crime, mesmo que bárbaro, nesse país, tamanhas as regalias que são dadas a esse curioso personagem jurídico. “Um crimezinho apenas, coisa que não precisa complicar a vida de ninguém.”

Parece que as regalias das quais se cerca o réu primário fazem parte da blindagem de classe com que que o cidadão "bem nascido" conta no direito penal brasileiro. Separa aquele criminoso pobre que duas ou mais vezes furtou galinhas do playboy que, só uma vez na vida, por brincadeira, resolveu matar um mendigo de porrada. Não se pode confundir o desrespeito sistemático à propriedade com uma diversão inocente, cometida só uma vez.

Os bons garotos que estavam espancando o mendigo são rapazes bem nascidos, de boa família, réus primários. Se encaixam perfeitamente no perfil do "cidadão de bem", que no Brasil significa "bem nascido", "bem vestido", não tendo nada a ver com caráter ou conduta.

Entendo que os holofotes estejam mais sobre o Vítor Suarez, pelo ato de heroísmo, por ter posto a própria vida em risco pra salvar a vida desgraçada e descartável do mendigo. Acho interessante que ele use esses holofotes para manter o caso em evidência, mesmo recusando o tratamento de herói.

Algo que não entendo é o sumiço do mendigo. O sujeito que estava sendo espancado inicialmente sumiu de cena, ninguém sabe quem é, ninguém sabe o que passou, que tipo de lesões sofreu. Talvez porque o Vítor tenha chegado a tempo, ou talvez porque a mídia reproduz a mesma mentalidade que movia aqueles rapazes de família na hora do espancamento: o mendigo não importa.

Vale também salientar que apenas o mendigo, sem nome, sem nada, e o Vítor são mencionados na maior parte das matérias recentes que tratam do assunto. Os nomes dos bons garotos que espancaram o mendigo e depois o Vítor, por ter estragado a brincadeira, surgem cada vez menos. Começam a ser menos frequentes nas notícias do caso e tendem a cair no esquecimento.

Tadeu Assad Farelli Ferreira, William Bonfim Nobre Freitas, Fellipe de Melo Santos, Edson Luis dos Santos Junior e Rafael Zanini Maiolino, talvez saiam dessa sem dever muita coisa à legislação penal brasileira, mas seus nomes ficam aqui, na internet, para que o peso da reprovação social seja eterno. É o mínimo que podemos fazer.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Quem é quem no "politicamente incorreto"



Dia desses um amigo me marcou numa postagem no Facebook para que eu comentasse sobre uma série de livros que ele anda lendo, entre eles um “Guia politicamente incorreto da filosofia”. Deixei pra olhar depois, porque tenho certas suspeitas sobre “intelectuais” ou “artistas” que buscam enaltecer o politicamente incorreto ou que bradam o tempo inteiro contra uma suposta tirania do politicamente correto.

A internet nos possibilita analisar discursos maneira muito peculiar e interessante. Discutimos bastante nas redes sociais, lemos e opinamos, analisamos textos dos mais diversos matizes “intelectuais” ou ideológicas. Podemos aqui desenvolver a capacidade de perceber elementos comuns a determinadas formulações e identificar a que grupos pertencem esses ou aqueles argumentos. É interessante observar a questão do “politicamente correto” sob essa perspectiva.

Não obstante alguns revezes, é indiscutível que estejamos hoje construindo uma sociedade mais tolerante, com a formação de um consenso de que devemos respeito ao outro, não importando sua orientação sexual, origem étnica ou qualquer outra diferença. Temos amadurecido nesse tocante e, claro, trabalhamos para reforçar esse consenso e para proteger as conquistas feitas nessa área.

Esses avanços no campo da cultura são muito mais fortes do que um imaginário código normativo do “politicamente correto”. Precisamos reforçar o consenso sobre a importância de nos respeitarmos mutuamente, não obstante nossas diferenças, muito mais do que estabelecer uma patrulha baseada numa normatividade estática. Essa mudança cultural é identificada, em certos grupos, como um suposto patrulhamento.

O sujeito que expressa preconceito ou mesmo que prega ódio, quando colhe a represália do grupo, ele não está sendo punido com base numa suposta normatização do politicamente correto. Está na verdade sofrendo as consequências de ter perdido o bonde da história. Daí surgem situações onde, pra piorar, o tal sujeito brada contra o “politicamente correto”, um tirano imaginário que o impede de desrespeitar livremente os demais, e fala com saudosismo do tempo em que podia esculachar livremente negros, mulheres, homossexuais, sem sofrer qualquer reprimenda.

Voltando ao ponto da identificação das fontes de cada discurso, nas redes sociais é possível “taggear” de onde partem determinadas argumentações e, via de regra, o brado contra o politicamente correto parte dos herdeiros “neoconservadores” de uma direita truculenta, saudosa de regimes autoritários e, por consequência, saudosa do tempo em que se podia esculachar (ou mesmo torturar e matar) minorias “indesejadas”. É mais confortável para esses grupos imaginarem-se perseguidos por um patrulhamento idiota do que concluírem que, na verdade, o mundo está mudando para melhor, apesar deles.

Claro, de mãos dadas com o brucutu saudoso de ditaduras vem sempre a direita religiosa. No Brasil, as igrejas neopentecostais, até pela inépcia dos seus participantes para a elaboração de um discurso próprio, importam, literal e integralmente, o discurso de ódio da direita religiosa norte-americana.

Fazendo coro com seus “irmãos texanos”, batem quase o tempo todo na tecla de que receberam uma missão divina para perseguirem homossexuais, por exemplo. Reclamam da “tirania do politicamente correto” por impedir sua operação de “caça às bichas”, a mais relevante missão do “homem temente a deus” nos dias atuais.

Claro, há um movimento residual de humoristas sem talento e sem inteligência que imaginam residir na ofensa a única forma de produção humorística. Falta de talento e de inteligência nunca impediu ninguém de fazer muito sucesso. A mídia está cheia de “humoristas” de destaque bradando contra uma suposta ditadura do politicamente correto, porque pra eles não dá pra fazer piada sem chamar negro de macaco.

Esse pessoal consegue fazer bastante barulho. Seus protestos contra uma imaginária tirania ganham eco no discurso de moderninhos metidos a “livres pensadores”. Ganha espaço a ideia de que o contestador moderno precisa bradar contra o “politicamente correto”, o maior inimigo da liberdade nos dias atuais. O moderninho é inofensivo, mas sua ajuda é muito bem-vinda para as causas daqueles outros, os efetivamente perigosos.

Há um punhado de chatos obcecados com uma normatividade politicamente correta? Não sei, sempre ouvi falar deles, mas em raríssimas vezes suspeitei estar diante de um. A verdade é que o tal “patrulhamento” é denunciado com frequência muito maior por esses grupos principais comentados acima.

É possível que, eventualmente, algum maluco “xiita” arrume encrenca por uma piada vinda de qualquer um de nós. A noção normatizar o que seria ou não seria politicamente correto é antipática, mas essa patrulha, mesmo que devamos admitir sua existência, tem um contingente muito menor do que o denunciado pelo “tiozão reaça de churrasco”, pelo pastor texano-tupiniquim, caçador de gays, ou pelo hipster “livre pensador”.

A suposta existência de um “patrulhamento” é de fato uma ideia repulsiva, mas não tenho visto esse calo doer em muitos pés por aí. Ele costuma doer sempre nos mesmos pés, de figuras que conheço bem, apresentadas brevemente nesse texto. Deixemos que gritem, deixemos que esses calos virem furúnculos. Suas lamentações são sinais de que estamos no caminho certo.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O deslize do secretário




Adoro os arroubos de sinceridade dos nossos políticos. Essa última do secretário de turismo do estado do Ceará, então, deve ficar guardada como uma das minhas preferidas.

Discute-se a ausência de passarelas para acesso dos pedestres, inicialmente previstas no projeto do novo Centro de Eventos. Bismarck Maia, num deslize de franqueza, deixou transparecer em sua justificativa que esse cidadão de segunda categoria que usa transporte coletivo e que anda a pé não é esperado por lá, porque a programação não diz respeito a ele.

A fala é muitíssimo interessante em vários aspectos. O elitismo puro, que norteia o pensamento político desses senhores, fala por si. Analisando outras implicações da visão nela explicitada, temos que para eles o transporte público deve ser sempre usado apenas por aquela parcela de “semi-excluídos”, que podem eventualmente ir de ônibus ao forró na periferia, mas nunca a qualquer coisa no centro de eventos.

É mais interessante observar que o secretário toma como premissa a ideia de que o transporte público serve apenas a quem não pode pagar por dignidade. Usa tal ponto de partida para explicar a organização da cidade, do espaço público. Ou seja, em vez de discutir a melhoria e a ampliação do uso do transporte coletivo, o anti-pensamento anti-urbanístico do governo do estado consolida o atual "apartheid"  configurando o espaço urbano de acordo com a segregação existente.

Ao redor do mundo, em cidades modernas, o “cidadão diferenciado”, o único digno do apreço dessa gente, anda de metrô vestido em seu terno de 3 mil dólares. O transporte público está ali cumprindo a função de atender a todos, democraticamente.

Certa vez, vi um aviso num ônibus em Edmonton, no Canadá, informando que a partir das 22:00 mulheres desacompanhadas podem pedir para que o motorista as deixe no ponto mais próximo de suas casas, mesmo que ali não haja uma parada, por questão de segurança. E olhe que o índice de criminalidade da cidade inteira não se deve comparar a uma amostra de alguns metros quadrados de qualquer pedaço de Fortaleza escolhido aleatoriamente.

Li aquela placa pensando no quanto ainda temos de avançar para que pormenores como aquele pudessem entrar em pauta, tendo em vista a maior gravidade dos problemas que se eternizam sem solução nesse tocante por aqui. O deslize de sinceridade do secretário de turismo deixa claro o quão longe estamos dessa discussão.

Busco ler sempre nas entrelinhas pra entender nossa política. Devo agradecer ao Bismarck Maia e aos outros com arroubos de franqueza pela chance que me dão de confirmar a acuidade de minha análise.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O MEC fica com Mercadante; o prejuízo do ENEM, com o estudante

haddad fedeu
Sim, fedeu mesmo.

Em matéria recente, a revista Veja pegou como objeto de sua “crítica” o trabalho do ministro Fernando Haddad, sujeito que, durante 6 anos à frente do MEC, tratou de transformar o processo seletivo para o ensino superior numa trapalhada como jamais vista “na história desse país”.

A matéria teve a oportunidade de arrancar a máscara do ministro que jogou na lama os planos de jovens que pretenderam vagas no ensino superior nos últimos anos, mas como isso não rende capa explosiva de escândalo de corrupção, o texto ficou na superficialidade. No balanço da Veja, o MEC de Haddad é apenas medíocre; e em sua mediocridade ele ainda é melhor avaliado que as gestões anteriores. 

Pouco explorado no artigo, o ponto fraco do ministro é também o seu “xodó”. O “novo ENEM” que veio substituir os vestibulares tradicionais realizados pelas Universidades prometendo modernização e democratização. Não promoveu nada disso e transformou o processo seletivo num caos sem tamanho.

Todos as edições do ENEM são juridicamente nulas


Quem já folheou algum livro de direito administrativo, assimilou algo dos princípios da disciplina e deu pelo menos uma olhadinha no que trata de nulidades, sabe que, juridicamente, nenhuma das edições do “novo ENEM” se sustenta.

Casos maiores ou menores de vazamentos de questões ou de provas inteiras, de irregularidades na impressão dos cadernos e outros problemas estiveram presentes no concurso desde o primeiro, em 2009. A despeito da energia investida pelo Ministério Público, os processos foram validados na base da “gambiarra”.

O ponto aqui é: num concurso público, uma irregularidade que afete a isonomia do processo sinaliza um vício de nulidade. O processo não é anulável, ele é nulo de pleno direito, bastando o reconhecimento judicial da nulidade para que todos os seus efeitos sejam invalidados e as relações jurídicas por ele influenciadas retornem ao estado anterior.

Desde 2009, o direito administrativo e a própria Constituição Federal foram postos em confronto com o novo ENEM e, para a nossa desgraça, o MEC venceu. Alguns dos mais elevados princípios do Direito Público foram afastados para que os vícios do processo fossem “sanados” na base da gambiarra. Isso porque, no Brasil, ainda é besteira respeitar a Constituição quando ela se confronta com os interesses do grupo político dominante num dado momento.

Entre discurso e a realidade


É interessante o discurso de sustentação do ENEM. A princípio, o processo deveria quebrar com a lógica de sobreposição de conteúdo que imperava nos vestibulares e estabelecer um exame mais razoável, menos condicionado por macetes e “bizus”, subtraindo um pouco do poder dos cursinhos particulares e democratizando os resultados.

Ademais, com o SISU, qualquer candidato estaria concorrendo a qualquer das vagas ofertadas no sistema, o que, em tese, deveria favorecer o ingresso dos estudantes nas diferentes instituições.
Da tese para a realidade, a coisa muda de figura. Como praticamente nada é feito para melhorar a qualidade do ensino oferecido na rede pública, o aluno dessas escolas continua em tremenda desvantagem na pontuação.

Para piorar, com todos concorrendo por todas as vagas, fica em vantagem o aluno que conta com recursos para prover sustento em outra cidade, o que sai caro. Quer dizer, enquanto o ENEM não serve sequer para a redução do desequilíbrio pré-existente, o SISU cria um outro que desfavorece ainda mais o estudante pobre. 

Com esse empilhamento de deturpações, a promessa de democratização do acesso à universidade fica exclusivamente a encargo de ações afirmativas. Assim, elas precisam ser decisivas, seu peso tem que ser tremendo para que elas valham de alguma coisa diante dos desequilíbrios agravados pelo próprio SISU.

Não é questão de favorecer levemente para ajudar um aluno esforçado e que luta contra adversidades oriundas de sua situação social. É preciso um multiplicador de notas calibroso, que praticamente dê a vaga. Até porque ele precisa compensar as disparidades extras que o ENEM criou sem resolver as que antes existiam.

A prova e, especialmente, a redação


Já em 2009, algumas questões de provas do ENEM viraram piada em toda parte. Numa delas, um texto de uma conversa via MSN, que parecia escrito por um cidadão disléxico que fumou crack, servia de ilustração para a pergunta que viria depois, que basicamente questionava se a norma culta estava sendo respeitada ali.

De lá pra cá, as questões desse tipo não desapareceram. Talvez elas tenham sido melhor camufladas para evitar a gozação, mas estão pela prova inteira, fazendo com que o questionário e os “textos de apoio”, por vezes sem utilidade e até mesmo idiotas, agigantem o caderno.

São quatro horas e meia no primeiro dia e cinco horas de prova no segundo dia. As questões de múltipla escolha dão preferência ao uso de “textos de apoio” mesmo nas questões em que eles não são necessários e estão ali apenas para causar perda de tempo.

No segundo dia, há um agravante. Após quarenta questões de línguas e interpretação de texto, vem uma sequência de 45 questões de “contas”, que foi o que sobrou para a matemática depois que a turma do Haddad mutilou o programa da disciplina.

O aluno do ensino médio no Brasil não tem mais matemática no currículo. Se o objetivo é aprovação no ENEM, ele tem basicamente que treinar a habilidade de fazer com caneta e papel contas que podem ser feitas com uma calculadora por quem nunca foi à escola.

Fica claro que, nessa segunda prova, a administração do tempo é muito mais importante que o preparo do candidato nas disciplinas, até porque o estudante precisa deixar um bom tempo para a redação que, ingenuamente, ele pensa que alguém vá ler antes de dar nota.

As recentes denúncias de que a redação do ENEM não é corrigida, ou de que passa por uma correção de “faz de conta”, apenas corroboram com as impressões que tive após prestar o “concurso” por três anos seguidos.

Aqui não cabe modéstia, pois preciso usar meu exemplo para dar destaque ao que vem sendo discutido sobre a redação do ENEM. Minhas redações, tanto em concursos quanto em avaliações simuladas, tiveram quase sempre nota máxima. Em algumas ocasiões, uma distração me fez perder um décimo numa dessas notas.

Falei algumas vezes sozinho o que agora vem sendo desmascarado pela imprensa: a redação do ENEM não é corrigida. O que eles fazem não pode ser chamado de correção. O resultado da prova de redação é aleatório.

Sou formado em direito e sempre me interessei por temas relacionados a política, sem interesses partidários, primando pelo exercício da crítica. A propaganda do ENEM dizia que essas capacidades seriam decisivas no julgamento da redação, com uma relevância até maior do que a da absoluta atenção à norma culta.

O estranho é que meus textos abordando temas de interesse social tenham sido bem avaliados durante a vida inteira, desde o ensino médio, passando pela faculdade e por uma especialização em Direito Consticional. Nunca tive dificuldade em obter notas altas e a petição que escrevi de caneta no exame da OAB também teve pontuação máxima. Só quem não “curtiu” muito o que escrevo foi a misteriosa “banca” do ENEM.

Aqui não faço coro com uma parte alucinada da oposição que brada contra um suposto julgamento ideológico dos textos. Embora não simpatize e não tenha interesse em participar de qualquer partido ou organização hoje existente, tenho formação de esquerda e meu dircurso, nesses textos, certamente agradaria a um corretor tendente a favorecer textos alinhados ideologicamente.

Prestei o “concurso” três vezes e posso afirmar, com base na minha experiência e nos novos relatos surgidos recentemente, que o resultado da redação é aleatório. O único ano em que obtive uma nota acima do limiar da mediocridade foi em 2011 e não considero aquele texto o melhor dos que preparei nas três ocasiões.

Sempre desconfiei de que eles na verdade não leem as redações, mas ficava calado pois, vindo de quem não obteve a nota que precisava, isso parece desculpa de fracassado. Agora mais gente começou a falar e a imprensa tá em cima.

Se há um concurso em que a nota da redação tem peso decisivo e essa nota é aleatória, isso não é um concurso. É claramente uma farsa. É preciso marcar colado pois isso precisa parar. Estão sabotando a vida de muitos jovens com essa farsa, ano após ano.


Universidade sabotada


Com o ENEM e o SISU, o Governo Federal praticamente eliminou a autonomia das Universidades em seus processos seletivos, que foram substituídos por uma farsa centralizadora, cheia de contradições. O concurso enfrenta, a cada ano, o ataque do Ministério Público que, cumprindo seu dever institucional, trata de desnudar e de explorar os vícios de nulidade evidenciados no processo.

É grande o custo gerado pelo ENEM, sem que qualquer vantagem seja oferecida. Há muito tempo as vagas em universidades públicas, nos cursos menos concorridos, estão aí para quem tem um desempenho na verdade bem modesto nas provas. O terror do vestibular é conversa de adolescente tapado. O ENEM surgiu com a promessa de eliminar uma “crueldade” imaginária do vestibular e com a falsa proposta de democratizar o acesso ao ensino superior.

Na verdade, os cursos menos concorridos já sofriam com a entrada de candidatos pouco capacitados e agora, nesse aspecto, tudo fica ainda pior. As provas específicas, que averiguavam a mínima desenvoltura em disciplinas fundamentais para a carreira acadêmica pretendida, foram eliminadas. As vagas de engenharia poderão ser ocupadas por candidatos com pouco conhecimento em matemática e, pela baixa concorrência do curso, podem se dar ao luxo de um desempenho mediano numa “prova de continhas”, para ficar apenas com um exemplo mais ilustrativo.

Na prática, os cursos menos concorridos estão aí para quem quiser, como sempre estiveram, com a diferença de que agora o candidato tem que ir bem no sorteio da nota da redação. Ou seja, não mudou quase nada e o pouco que mudou foi pra pior.

No caso do curso de medicina, o caos é total, tendo em vista que o provão, menos complexo e com o tempo apertado, é menos eficiente para testar candidatos em alto rendimento. O desafio do aluno que pretende medicina é o de se manter por vários anos acima das notas de corte num provão extenso e, na sua maior parte, pouquíssimo exigente, esperando em um desses anos ser contemplado no sorteio da redação.

O que Fernando Haddad queria com o ENEM? Claro que o projeto não é uma deliberada sabotagem do sistema de acesso ao ensino superior. A questão é que as mudanças de verdade na educação dão resultados a longo prazo e o ministro precisava de algo grandioso em seu currículo para partir, como agora está partindo, para carreira solo como candidato.

Medidas que tenham efeito na triste realidade do ensino no Brasil tendem a refletir a médio ou a longo prazo, quando já se foram as gestões, os cargos, e os holofotes. O ENEM é um projeto aventureiro, arriscado, de um sujeito que precisava aparecer, caso desse certo, com algo digno de ilustrar um grande currículo. O plano arriscado visava apenas acrescentar algo o currículo do ministro.

Tivemos três anos para ver que o ENEM trocou o vestibular tradicional pelo mais puro caos. O resultado da aventura do ministro são três anos consecutivos de desastre, o que afetou a vida dele, que continua sem nada de positivo para apresentar e mesmo assim vai ser candidato, e a vida de incontáveis brasileiros que tiveram a infelicidade de desejar uma vaga numa universidade pública nesse intervalo.

Fernando Haddad será candidato à prefeitura de São Paulo levando no currículo um projeto irresponsável, aventureiro, que sabotou a seleção de candidatos às vagas do ensino superior público. Minha volta à condição de vestibulando não saiu como eu esperava, mas também estou partindo para uma nova graduação na qual, creio, conseguirei me realizar e dar o melhor dentro de minhas potencialidades. No fim das contas, ambos estaremos bem, eu com meu esforço e ele com o apoio de um eleitorado míope e de uma "esquerda" que institucionalizou o "oba oba" e os aplausos incondicionais a qualquer tipo de palhaçada.