terça-feira, 28 de agosto de 2012
O problema da universidade “estilo ENEM”
Com todas as universidades federais em greve, vou por aqui adiantando minhas leituras em bioquímica. A ideia é facilitar minha vida durante o básico no curso de medicina, além de preencher meu tempo enquanto dura essa greve eterna. Como calouro da época de transição entre o vestibular tradicional e o ENEM, esse estudo introdutório me leva constantemente a refletir sobre a recente mudança no processo seletivo.
A discussão sobre o ENEM como modelo de seleção para ingresso na universidade foi superada. Construiu-se um consenso de que os críticos do modelo são engomadinhos elitistas, defensores de um sistema meritocrático calibrado precisamente para manter seus privilégios de classe. “Case closed”. O problema é que a ciência acontece num campo e as discussões político-ideológicas em outro.
O que define a complexidade da informação com que deve lidar um estudante disposto a construir uma formação científica sólida não é o MEC, não é o ministro que acha que pensar dói demais e que devemos poupar o jovem desse sofrimento. Quem determina a complexidade da informação a ser assimilada e processada pelo estudante é o desenvolvimento da ciência, e esse acontece, para o bem ou para o mal, bem longe da vontade do ministro, porque ele se dá globalmente, nem mesmo está restrito ao Brasil.
É indesejável que se forme (ou que seja aumentado) um abismo entre o que sabe um estudante formado no Brasil e um formado no exterior. Se um livro é adotado para bioquímica durante o básico nos cursos de medicina, no Brasil e no mundo, é importante que os calouros ingressem nas faculdades capacitados a estudá-lo, portando os pre-requisitos que aquela leitura exige.
Como um candidato que observou a transição entre os modelos e que está agora em contato com o material adotado na faculdade de medicina, afirmo taxativamente: o tal “estilo ENEM” não capacita ninguém a entender o que está lendo num bom livro de bioquímica. O problema aqui não é a imbecilização geral do provão, o problema é a eliminação das provas específicas da segunda fase, que no modelo antigo forçavam os candidatos a um maior aprofundamento nas disciplinas diretamente relacionadas ao curso escolhido, no caso, química e biologia.
No exemplo do livro que tenho usado como referência, o “Princípios de bioquímica”, do Lehninger, embora tenha uma grande preocupação com a didática, o autor não volta tanto ao “beabá” para ensinar química orgânica a um leigo. A leitura sobre reações nucleofílicas, sobre substituições radicalares e sobre os mecanismos dessas reações é satisfatória para quem traz alguma bagagem sobre os assuntos, mas imagino que seja insuportavelmente inacessível para quem nada trouxe nessa bagagem. Isso para ficar num único exemplo pinçado de um livro de mil páginas.
O problema é que o vestibular, “demonizado” como um carrasco a trucidar as pobres criancinhas do Brasil, não era apenas uma porta fechada no acesso à universidade. Ele era uma baliza a tentar garantir que os candidatos aos mais diversos cursos se preparassem, de alguma forma, pro que devem enfrentar na universidade. Se era ruim com ele, muito pior estará sem ele.
O descompasso criado pelo ENEM forçará uma descida no nível de exigência em muitas das cadeiras na universidade. Para ficar no exemplo aqui utilizado, não há tempo hábil e nem material disponível para ensinar um “beabá” de química e biologia aos alunos das cadeiras de bioquímica nos cursos de medicina. Da mesma maneira, presumo que se tenha criado um abismo entre o que é cobrado em matemática e física para os cursos de engenharia e os pre-requisitos da formação básica de um engenheiro, de forma bem análoga.
A gambiarra feita pelo MEC no processo de seleção deverá refletir numa “gambiarra” dentro dos cursos, que deverão descer o nível de exigência no sentido de se adequarem ao aluno “estilo ENEM”. Nossa política é feita dessa maneira, com um encadeamento de gambiarras para que nunca tenhamos de enfrentar os problemas centrais. Mas quem é louco para se preocupar com a qualidade da formação, quando o governo não se preocupa sequer em resolver a greve e devolver a universidade ao seu funcionamento?
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