terça-feira, 4 de outubro de 2011

Humor, baixaria misógina reiterada e “liberdade de expressão”

Dont-be-sexist
É inusitado retomar esse blog assim depois de tanto tempo e fazê-lo movido por uma “piada” idiota vinda de um “humorista” do CQC. A conversa sobre a piada em si e suas repercussões eu já vinha fazendo no Twitter, mas o espaço lá não é o melhor para tocar nos pontos mais importantes, que dizem respeito diretamente à questão da liberdade de expressão, conforme argumentam alguns participantes mais confusos.
Conteúdo odioso autodeclarado “politicamente incorreto”
Muita gente por aí se declara “politicamente incorreta” pelo simples fato de se portar com irreverência, mas esses nem sequer tangenciam o “politicamente incorreto de raiz”, que está intimamente atrelado ao discurso neoconservador, faz parte dele e é ponto importante da sua retórica.

É uma questão de conveniência. A parte mais truculenta da direita atual, aquela que se porta como “redneck texano” em qualquer parte do mundo, precisa insurgir-se contra uma ilusória “ditadura do politicamente correto” para derramar seu ódio contra homossexuais, contra as conquistas femininas e por vezes até contra estrangeiros ou minorias étnicas.

Quem não cruzou ainda com esses tipos por aí talvez não faça a relação, mas se existe um cerne de onde emana toda a retórica de insurgência contra uma suposta “patrulha do politicamente correto”. Ele fica precisamente localizado na “produção intelectual” (sic) do típico “free thinker” neoconservador. É isso que arma, por exemplo, o discurso de pastores evangélicos que querem ser livres para “usar a bíblia” na sua “nobre missão” de taxar homossexuais como aberrações.

Esse tipo de gente vive se queixando de uma crescente censura, advinda de um patrulhamento realizado por “gente de esquerda” que se agarra à normatividade do politicamente correto para tolher o seu sagrado direito de pregar ódio e de despejar ofensas sobre minorias. 
Responsabilidade, cidadania e liberdade de expressão
Como se não bastasse termos um segmento da sociedade mobilizado na defesa de um “direito de pregar o ódio”, há um grupo de “artistas” que considera a simples ofensa um genial trabalho humorístico e acaba servindo, convenientemente, para provocar uma confusão entre a responsabilidade pelos próprios atos e a liberdade de expressão, então vamos nós tentar pontuar essa questão.

Não pretendo citar dispositivos legais nesse texto, não é minha tarefa aqui, mas convém salientar que o país vive, desde 1988, sob a égide de uma Constituição democrática que se sobrepõe e dá força a todos os códigos e leis infraconstitucionais. São 23 anos de discussões que visam a harmonizar todo o sistema normativo ao espírito democrático e ao primado da cidadania que orientam a Constituição Federal. Estamos longe de chegar ao ideal, caminhamos na direção dele mais lentamente do que gostaríamos, mas caminhamos.
 
Nosso sistema normativo não apenas exclui, como abomina, qualquer tipo de cerceamento à liberdade de expressão. Todos são livres para manifestarem-se como quiserem sobre os temas que bem entenderem, sendo apenas vedado o anonimato para que cada um possa responsabilizar-se perante a sociedade por aquilo que declara. Trata-se de uma questão de responsabilidade, que nem de longe se confunde com censura ou cerceamento à liberdade de expressão ou muito menos de imprensa.

Liberdade de expressão não cria um ambiente onde todos podemos trocar ofensas livremente, nem promover mensagens de ódio e desrespeito às mulheres, aos homossexuais, a grupos étnicos ou a quem quer que seja. Declarações desse tipo geram respostas morais e jurídicas que não têm qualquer relação com censura e se dão através de mecanismos previstos na ordem normativa das mais avançadas democracias.

Há, por outro lado, um grupo de profissionais da mídia que gosta de ver em tudo uma ameaça ilusória de volta da censura, de retrocesso da democracia. Alguns estão comprometidos com uma agenda política mais abrangente de oposição ao governo, outros, até por falta de repertório, estão tocando há quase uma década esse “samba de uma nota só” onde afirmam estarmos sob ameaça iminente de uma volta censura que nunca veio e nem dá qualquer sinal de que virá.

Há sempre quem diga “ah, mas o humor, a piada, sempre irá colocar alguém, alvo da gozação, em má situação”. A questão aqui é de inteligência, de ter um mínimo de sensibilidade. É possível ver gays rindo de piadas de gays na companhia de outros gays. Isso porque as piadas fazem graça com questões de comportamento, mesmo que caricaturando o homossexual. Essas são diferentes da pura ofensa travestida de “gracinha”, que visa muito mais a diminuir o sujeito como ser humano, atacar-lhe a dignidade, do que a fazer humor de qualquer tipo.

Piadas racistas, sexistas, que tem como único mote o ataque à honra e a dignidade do outro, partem de premissas odiosas e precisam encontrar, na plateia, uma aceitação dessas premissas. No momento em que a plateia não compactua com a mensagem odiosa, o piadista se vê em apuros. Quem é profissional do humor que tenha consciência disso e saiba se deslocar com habilidade, que conte piadas imbecis quando tiver a certeza de estar cercado por imbecis.

O problema é que estamos em tempos de crise da criatividade e até mesmo os idiotas precisam do seu lugar ao sol. Como bem destacou minha “amiga de Twitter” Maria Stella Soares, a questão é que a lei também se aplica ao idiota.

Em tempos de mídias sociais e de hiperconectividade, onde qualquer declaração que cause maior impacto pode voar pela internet inteira e colocar o seu autor no centro das atenções, é bastante fácil um sujeito virar assunto do país inteiro, talvez até do mundo, simplesmente falando uma estupidez de grosso calibre, como declarar num programa de TV que comeria uma mulher grávida juntamente com o filho que ela carrega.

O grande desafio para quem pretenda viver de uma atividade tão baixa é o constante cálculo de “custo-benefício” desse tipo de declaração. Até que ponto vale à pena alçar-se ao topo dos temas da internet dessa maneira, sendo exposto como um ícone da baixaria e da escrotice por meio de uma “piada”, que de piada não tinha e nem poderia ter nada.

O suposto benefício já veio, não é? Eu mesmo que passo longe de uma TV sintonizada em qualquer coisa parecida com “CQC” estou aqui tratando dessa porcaria de tema, ajudando a manter os holofotes sobre o autor da tal “piadinha”.

Agora a questão é que, para alguns envolvidos na discussão, o autor da dita “piada” não pode colher os custos, não pode arcar com as consequências da grosseria, simplesmente porque, na opinião desses, os '”humoristas” devem ficar situados acima de qualquer legislação.

Quer dizer, responder civilmente por aquilo que declara agora é uma “volta da censura”, porque os humoristas devem estar acima da lei, e os imbecis mais ainda. Numa formulação desse tipo, um sujeito que é humorista e imbecil ao mesmo tempo poderá se transformar no próprio Leviatã.
Relativismo de conveniência
O que tornou essa discussão interessante foi o fato de ter surgido logo após um julgamento do Conar que considerou ofensiva e machista uma campanha publicitária onde a Hope Lingerie, num vídeo com a modelo Gisele Amélia Bündchen, sugere que as mulheres devam oferecer favores sexuais como compensação ao dar notícias desagradáveis ao “pater familiae” (em latim destaca melhor a noção de mulher objeto).

Vendo a discussão pela internet, percebi que algumas pessoas que aplaudiram a decisão do Conar partiram, logo em seguida, em defesa do “humorista”. No primeiro momento, a publicidade era ofensiva, objetificava as mulheres e trabalhava contra todas as conquistas sociais delas. Num segundo momento, a “piada”, vinda de um sujeito que já havia feito “gracinhas” como sugerir que “mulheres feias devem agradecer por serem estupradas”, era apenas uma brincadeira e essas brincadeiras devem acontecer livremente e sem consequências, em virtude de uma imunidade jurídica do piadista.

Então, a propaganda da Hope também era uma piada e essa foi a defesa usada pela empresa em prol do texto do comercial. A ideia agora é que você pode usar de uma “piada” como veículo para propagar todo tipo de ofensas e baixarias porque há um consenso sendo trabalhado de que as piadas devem estar fora do alcance da lei, de que os “humoristas” não devem responder pelo que dizem ou de que a legislação vigente não deve ser aplicada a imbecis.

O relativismo é uma ferramenta importante em trabalhos de filosofia, mas quando aplicado por nós em temas do cotidiano tende a ser desviado por distrações que nos fazem ser relativistas apenas quando convém. Assim podemos analisar os fatos com base em nossos juízos de valor em uma ocasião e em outras, não. É quase como sofismar inconscientemente.
O gran finale
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Após ser afastado do programa em decorrência de suas reiteradas “piadinhas” com baixaria misógina, o “humorista” posta imagens no Twitter onde insinua estar “saindo por cima” cercado de “companhias femininas remuneradas”. Gênio? Aham…

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

"E deus viu que isso era bom"

 

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Uma coisa estranha na narrativa do Gênesis é que, vencida cada etapa da criação, afirma-se "e deus viu que isso era bom". Agora, quando você é onipotente e onisciente, não dá pra saber que algo vai ficar bom antes mesmo de começar a fazer?

Comigo mesmo, que sou bem limitado, acontece às vezes de começar a fazer algo já sabendo que vai ficar bom... Esse texto, por exemplo, quando comecei já sabia que ele seria mediocre, mas segui em frente apenas porque ele valeria como uma provocação. E garanto que foi bem fácil fazer essa previsão.

Ocorre que, claro, o sujeito que escreveu aquilo, àquele tempo, não teve acesso à ciência ou a qualquer coisa assemelhada a um "método". Basicamente, o que garante o resultado e nos permite afirmar, antes de fazer, que algo vai ficar bom, é a qualidade da ideia e o método usado para a execução.

O texto, evidentemente, expõe as limitações do seu autor. Os homens que escreveram aqueles textos projetaram em deus, o personagem que estavam criando, suas próprias limitações. O que assombra é que milênios depois isso não fique perceptível.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Da revolução dos bichos à intentona das árvores

 

Estou com ingressos comprados para ver o Rush tocar em casa, no Canadá, num estádio de hockey. Um sonho de infância se realizando. O show será no dia 19 de abril próximo no Copps Coliseum, em Hamilton, Ontario e… bom, verei o power trio do rock progressivo que me inspirou musicalmente a vida inteira, mais em algumas épocas, menos em outras, mas sempre ali como referência.

Com a antecipação do show, tenho ouvido um bocado de coisas da banda. Possuo aqui a discografia inteira e escuto mais a fase dos anos 70, que vai até praticamente o Moving Pictures e consiste na parte que considero mais interessante da produção musical do Rush. Dou uma chance a essa fase que veio após o Signals, mas não consigo me entusiasmar por esses albuns como acontece com os mais antigos.

Numa dessas audições preparatórias, me deparei novamente com The Trees, do álbum Hemispheres, gravado em 1978 e um dos meus preferidos. Eu já tinha da letra dessa música a maior parte das impressões que venho expor nessa postagem, mas apenas agora resolvi colocá-las num texto. Quando eu era moleque "roqueiro" não existiam blogs e escrever diarinhos era um hábito que podia pesar bastante contra a sua reputação.

A letra dessa música já levantou muita discussão entre os fãs da banda ao longo dos tempos e a maioria das interpretações tenta imprimir nela um significado que vai muito além do que a própria letra possibilita.

There is unrest in the forest, there is trouble with the trees; For the Maples want more sunlight and the Oaks ignore their pleas.

Maples tem a forma de arbustos e são imensamente disseminados no Canadá. Como arbustos, tem baixa estatura e caules bastante ramificados.

 

The trouble with the Maples, and they're quite convinced they're right; The Oaks are just too lofty, and they grab up all the light

 

 

Carvalhos (oaks), além de imensos também se ramificam bastante e produzem muita sombra. O que a letra sugere é uma situação de conflito por luz entre as duas espécies vegetais onde os maples se unem, formam um sindicato, e se põem a lutar pelo seu direito à fotossíntese. Por outro lado, os carvalhos apreciam a maneira como foram feitos pela natureza, e naturalmente, não irão aceitar qualquer mudança.

But the oaks can't help they're feelings if they like the way they're made, and they wonder why the Maples can't be happy in they're shade.

Até aqui, a fábula exposta na letra, embora não seja original e não resista à acusação de ser uma mera transposição da Revolução dos Bichos para o reino vegetal, mantém um rumo interessante. Há o conflito e há uma elite que não irá de maneira alguma abrir mão de seus privilégios, mesmo que eles ameacem até mesmo a subsistência dos estamentos mais baixos daquela sociedade arbórea.

There is unrest in the forest, and the creatures all have fled, as the Maples scream "OPPRESSION!!", and the Oaks just shake their heads.

A tensão aumenta e todas as outras espécies deixam a floresta. Aproxima-se o confronto final, a sublevação dos maples oprimidos contra os carvalhos opressores avança e a fábula chega ao ápice.

So the Maples formed a union and demanded equal rights. "The Oaks are just too greedy. We will MAKE them give us light!

Até aí, a única acusação a pesar contra a letra de The Trees é justamente o fato de ser um copy/paste estilizado de Animal Farm, mas a letra da música do trio canadense se desgraça mesmo é no desfecho.

Now, there's no more Oak oppression, for they passed a 'noble' law. And the Trees are all kept equal by hatchet, axe, and saw.

Que é isso? No justo momento da confrontação, a revolução simplesmente não se deu. Do nada, apareceram serras e machados e reduziram todos eles a tocos.

Tudo bem que a revolução dos bichos na fazenda do Orwell também não acaba em boa coisa, mas ali a fábula faz uma certeira crítica ao totalitarismo stalinista e aqueles porcos correspondem justamente aos suínos filhos da puta que mantiveram uma máquina de opressão e matança "em nome da causa" no leste europeu. Mas o que diabos aconteceu com a fábula vegetal do Rush? Esses machados e serras são uma espécie de "castigo divino"?

Os machados e as serras vieram simplesmente do nada e acabaram com o conflito aniquilando igualmente ambos os lados da contenda. Quer dizer, a coisa ganha aquele ar de "castigo divino" contra a própria existência do conflito e a letra, com esse fechamento, não pode ganhar outra interpretação a não ser a de uma desastrada apologia a uma sociedade estamental nos moldes do feudalismo.

No entanto, os canadenses possuem uma obra que, no contexto, não permite que os consideremos lunáticos defensores de ordens estamentais ou coisas do tipo. Isso fica claro, por exemplo, na letra de Bastile Day, uma música que glorifica a violenta quebra da ordem feudal. Dessa forma, é mais fácil julgar que eles não precisavam de versos extras para concluir The Trees e essas serras e machados chegaram apenas para dar um fechamento abrupto à letra da música. Por sinal, a letra de Bastile Day trata de revolução social e é bem mais interessante, assim como é concluída mais cuidadosamente.

Fechamentos desastrosos à parte, concedo a licença poética aos caras e se eles tocarem The Trees por lá eu estarei segurando uma latinha de cerveja bock e forçando meu falsete horroroso para cantar junto!

 

 

Ah… estive bastante sumido daqui porque minha cota de blogagem anda consumida no www.droider.com.br, mas vez por outra pretendo voltar por aqui e produzir alguma coisa. Faz bem escrever sobre assuntos não tecnológicos.