sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

"E deus viu que isso era bom"

 

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Uma coisa estranha na narrativa do Gênesis é que, vencida cada etapa da criação, afirma-se "e deus viu que isso era bom". Agora, quando você é onipotente e onisciente, não dá pra saber que algo vai ficar bom antes mesmo de começar a fazer?

Comigo mesmo, que sou bem limitado, acontece às vezes de começar a fazer algo já sabendo que vai ficar bom... Esse texto, por exemplo, quando comecei já sabia que ele seria mediocre, mas segui em frente apenas porque ele valeria como uma provocação. E garanto que foi bem fácil fazer essa previsão.

Ocorre que, claro, o sujeito que escreveu aquilo, àquele tempo, não teve acesso à ciência ou a qualquer coisa assemelhada a um "método". Basicamente, o que garante o resultado e nos permite afirmar, antes de fazer, que algo vai ficar bom, é a qualidade da ideia e o método usado para a execução.

O texto, evidentemente, expõe as limitações do seu autor. Os homens que escreveram aqueles textos projetaram em deus, o personagem que estavam criando, suas próprias limitações. O que assombra é que milênios depois isso não fique perceptível.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Da revolução dos bichos à intentona das árvores

 

Estou com ingressos comprados para ver o Rush tocar em casa, no Canadá, num estádio de hockey. Um sonho de infância se realizando. O show será no dia 19 de abril próximo no Copps Coliseum, em Hamilton, Ontario e… bom, verei o power trio do rock progressivo que me inspirou musicalmente a vida inteira, mais em algumas épocas, menos em outras, mas sempre ali como referência.

Com a antecipação do show, tenho ouvido um bocado de coisas da banda. Possuo aqui a discografia inteira e escuto mais a fase dos anos 70, que vai até praticamente o Moving Pictures e consiste na parte que considero mais interessante da produção musical do Rush. Dou uma chance a essa fase que veio após o Signals, mas não consigo me entusiasmar por esses albuns como acontece com os mais antigos.

Numa dessas audições preparatórias, me deparei novamente com The Trees, do álbum Hemispheres, gravado em 1978 e um dos meus preferidos. Eu já tinha da letra dessa música a maior parte das impressões que venho expor nessa postagem, mas apenas agora resolvi colocá-las num texto. Quando eu era moleque "roqueiro" não existiam blogs e escrever diarinhos era um hábito que podia pesar bastante contra a sua reputação.

A letra dessa música já levantou muita discussão entre os fãs da banda ao longo dos tempos e a maioria das interpretações tenta imprimir nela um significado que vai muito além do que a própria letra possibilita.

There is unrest in the forest, there is trouble with the trees; For the Maples want more sunlight and the Oaks ignore their pleas.

Maples tem a forma de arbustos e são imensamente disseminados no Canadá. Como arbustos, tem baixa estatura e caules bastante ramificados.

 

The trouble with the Maples, and they're quite convinced they're right; The Oaks are just too lofty, and they grab up all the light

 

 

Carvalhos (oaks), além de imensos também se ramificam bastante e produzem muita sombra. O que a letra sugere é uma situação de conflito por luz entre as duas espécies vegetais onde os maples se unem, formam um sindicato, e se põem a lutar pelo seu direito à fotossíntese. Por outro lado, os carvalhos apreciam a maneira como foram feitos pela natureza, e naturalmente, não irão aceitar qualquer mudança.

But the oaks can't help they're feelings if they like the way they're made, and they wonder why the Maples can't be happy in they're shade.

Até aqui, a fábula exposta na letra, embora não seja original e não resista à acusação de ser uma mera transposição da Revolução dos Bichos para o reino vegetal, mantém um rumo interessante. Há o conflito e há uma elite que não irá de maneira alguma abrir mão de seus privilégios, mesmo que eles ameacem até mesmo a subsistência dos estamentos mais baixos daquela sociedade arbórea.

There is unrest in the forest, and the creatures all have fled, as the Maples scream "OPPRESSION!!", and the Oaks just shake their heads.

A tensão aumenta e todas as outras espécies deixam a floresta. Aproxima-se o confronto final, a sublevação dos maples oprimidos contra os carvalhos opressores avança e a fábula chega ao ápice.

So the Maples formed a union and demanded equal rights. "The Oaks are just too greedy. We will MAKE them give us light!

Até aí, a única acusação a pesar contra a letra de The Trees é justamente o fato de ser um copy/paste estilizado de Animal Farm, mas a letra da música do trio canadense se desgraça mesmo é no desfecho.

Now, there's no more Oak oppression, for they passed a 'noble' law. And the Trees are all kept equal by hatchet, axe, and saw.

Que é isso? No justo momento da confrontação, a revolução simplesmente não se deu. Do nada, apareceram serras e machados e reduziram todos eles a tocos.

Tudo bem que a revolução dos bichos na fazenda do Orwell também não acaba em boa coisa, mas ali a fábula faz uma certeira crítica ao totalitarismo stalinista e aqueles porcos correspondem justamente aos suínos filhos da puta que mantiveram uma máquina de opressão e matança "em nome da causa" no leste europeu. Mas o que diabos aconteceu com a fábula vegetal do Rush? Esses machados e serras são uma espécie de "castigo divino"?

Os machados e as serras vieram simplesmente do nada e acabaram com o conflito aniquilando igualmente ambos os lados da contenda. Quer dizer, a coisa ganha aquele ar de "castigo divino" contra a própria existência do conflito e a letra, com esse fechamento, não pode ganhar outra interpretação a não ser a de uma desastrada apologia a uma sociedade estamental nos moldes do feudalismo.

No entanto, os canadenses possuem uma obra que, no contexto, não permite que os consideremos lunáticos defensores de ordens estamentais ou coisas do tipo. Isso fica claro, por exemplo, na letra de Bastile Day, uma música que glorifica a violenta quebra da ordem feudal. Dessa forma, é mais fácil julgar que eles não precisavam de versos extras para concluir The Trees e essas serras e machados chegaram apenas para dar um fechamento abrupto à letra da música. Por sinal, a letra de Bastile Day trata de revolução social e é bem mais interessante, assim como é concluída mais cuidadosamente.

Fechamentos desastrosos à parte, concedo a licença poética aos caras e se eles tocarem The Trees por lá eu estarei segurando uma latinha de cerveja bock e forçando meu falsete horroroso para cantar junto!

 

 

Ah… estive bastante sumido daqui porque minha cota de blogagem anda consumida no www.droider.com.br, mas vez por outra pretendo voltar por aqui e produzir alguma coisa. Faz bem escrever sobre assuntos não tecnológicos.