quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Espírito republicano sem altruísmo presumido


MADRET~1
O brasileiro parece ter dificuldade para desatrelar o espírito republicano de uma dose elevada de altruísmo. A necessidade de ver uma ligação entre uma coisa e outra pode turvar nosso raciocínio político e nossa capacidade de analisar os candidatos, os grupos a que pertencem, os interesses que representam e até suas propostas.

Essa ligação, existente no nosso imaginário, condiciona os discursos e nos força à generalização da hipocrisia. Qualquer candidato precisa se apresentar como aquele sujeito que está abrindo mão de sua vida privada para, de maneira sacerdotal e abnegada, dedicar-se a cuidar da coletividade. O problema é acentuado pelo populismo que norteou e ainda norteia muitos discursos.

Trazendo o tema para o campo da sobriedade, deveria ser mais fácil entender que um homem pode se interessar pela vida pública também para se realizar profissionalmente, dando melhor aproveitamento a suas aptidões. Esse tipo de realização, impulsionada um pouco pela boa dose de vaidade que cada um de nós carrega, direciona escolhas profissionais e é capaz de arrancar bastante empenho.

Estar inserido na atividade com que se identifica, onde pode trabalhar com paixão, talvez não seja a mais comum das ambições num mundo comandado pela caçada ao dinheiro, mas é uma busca que marca bastante as lutas de alguns homens. E não há altruísmo nisso. Trata-se de fato de uma busca bastante individualista, embora possa ser enfeitada com algum romantismo, o que não acontece com a simples busca do enriquecimento.

Por outro lado, parece imperar um simplismo conforme o qual há apenas dois tipos de homens, o ambicioso caçador de fortuna e o altruísta, descendente direto da Madre Teresa de Calcutá. O primeiro seria um corrupto inato e sobre o segundo recairia a legitimidade para fazer política pensando efetivamente na coletividade, atento aos ditames do espírito republicano.

Acredito que a ambição desmedida faz o corrupto, mas não acredito no descendente da Madre, até porque ela não deve mesmo ter tido filhos. Porém, há outros sonhos que alimentamos, entre eles o de dar plena vazão a nossas potencialidades, de sentirmo-nos bem aproveitados intelectualmente, de estarmos em contato com nossas paixões, que podem inspirar um bom político que não seja necessariamente um abnegado altruísta.

Claro, um mandato amplia contatos, pode melhorar naturalmente a posição social do candidato sem que esse se mostre um corrupto, sem que ele dê uma banana ao enigmático espírito republicano. Isso é reprovável? Que profissional, de qualquer outra área, não gosta de ascender em sua carreira?
Acabar com essa ingenuidade sobre o político altruísta ideal pode ajudar na escolha de bons candidatos.

Não quer dizer que cada um faça política buscando apenas o melhor para si, pois isso, em sentido amplo, é corromper-se. Quer dizer apenas que é possível haver um político profissional que pensa em realizar-se profissionalmente na política e esse homem não é necessariamente um bandido e nem precisa ser um santo.

Essa visão binária, maniqueísta, é uma das fontes da nossa cegueira, da nossa incapacidade de interpretar os processos numa democracia representativa.

Tocando no básico, a política deve ser feita tendo em vista os assuntos e interesses da coletividade. Cada um representa mais precisamente os interesses daquele grupo ou classe social à qual está mais intimamente ligado, que inclusive lhe confere apoio político. Essa é a natureza do processo democrático.

O que importa, em termos de leitura da realidade, é justamente identificar os interesses que representam os candidatos com base no contexto em que eles estão inseridos, nos grupos com que se relacionam. A simpatia ou antipatia com um candidato ou com um projeto, pedindo alguma licença ao Carl Schmitt, deve se basear nisso, e não na eterna espera do candidato ideal, desmedidamente altruísta.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O problema da universidade “estilo ENEM”

burro

Com todas as universidades federais em greve, vou por aqui adiantando minhas leituras em bioquímica. A ideia é facilitar minha vida durante o básico no curso de medicina, além de preencher meu tempo enquanto dura essa greve eterna. Como calouro da época de transição entre o vestibular tradicional e o ENEM, esse estudo introdutório me leva constantemente a refletir sobre a recente mudança no processo seletivo. 

A discussão sobre o ENEM como modelo de seleção para ingresso na universidade foi superada. Construiu-se um consenso de que os críticos do modelo são engomadinhos elitistas, defensores de um sistema meritocrático calibrado precisamente para manter seus privilégios de classe. “Case closed”. O problema é que a ciência acontece num campo e as discussões político-ideológicas em outro.

O que define a complexidade da informação com que deve lidar um estudante disposto a construir uma formação científica sólida não é o MEC, não é o ministro que acha que pensar dói demais e que devemos poupar o jovem desse sofrimento. Quem determina a complexidade da informação a ser assimilada e processada pelo estudante é o desenvolvimento da ciência, e esse acontece, para o bem ou para o mal, bem longe da vontade do ministro, porque ele se dá globalmente, nem mesmo está restrito ao Brasil.

É indesejável que se forme (ou que seja aumentado) um abismo entre o que sabe um estudante formado no Brasil e um formado no exterior. Se um livro é adotado para bioquímica durante o básico nos cursos de medicina, no Brasil e no mundo, é importante que os calouros ingressem nas faculdades capacitados a estudá-lo, portando os pre-requisitos que aquela leitura exige.

Como um candidato que observou a transição entre os modelos e que está agora em contato com o material adotado na faculdade de medicina, afirmo taxativamente: o tal “estilo ENEM” não capacita ninguém a entender o que está lendo num bom livro de bioquímica. O problema aqui não é a imbecilização geral do provão, o problema é a eliminação das provas específicas da segunda fase, que no modelo antigo forçavam os candidatos a um maior aprofundamento nas disciplinas diretamente relacionadas ao curso escolhido, no caso, química e biologia. 

No exemplo do livro que tenho usado como referência, o “Princípios de bioquímica”, do Lehninger, embora tenha uma grande preocupação com a didática, o autor não volta tanto ao “beabá” para ensinar química orgânica a um leigo. A leitura sobre reações nucleofílicas, sobre substituições radicalares e sobre os mecanismos dessas reações é satisfatória para quem traz alguma bagagem sobre os assuntos, mas imagino que seja insuportavelmente inacessível para quem nada trouxe nessa bagagem. Isso para ficar num único exemplo pinçado de um livro de mil páginas.

O problema é que o vestibular, “demonizado” como um carrasco a trucidar as pobres criancinhas do Brasil, não era apenas uma porta fechada no acesso à universidade. Ele era uma baliza a tentar garantir que os candidatos aos mais diversos cursos se preparassem, de alguma forma, pro que devem enfrentar na universidade. Se era ruim com ele, muito pior estará sem ele.

O descompasso criado pelo ENEM forçará uma descida no nível de exigência em muitas das cadeiras na universidade. Para ficar no exemplo aqui utilizado, não há tempo hábil e nem material disponível para ensinar um “beabá” de química e biologia aos alunos das cadeiras de bioquímica nos cursos de medicina. Da mesma maneira, presumo que se tenha criado um abismo entre o que é cobrado em matemática e física para os cursos de engenharia e os pre-requisitos da formação básica de um engenheiro, de forma bem análoga.

A gambiarra feita pelo MEC no processo de seleção deverá refletir numa “gambiarra” dentro dos cursos, que deverão descer o nível de exigência no sentido de se adequarem ao aluno “estilo ENEM”. Nossa política é feita dessa maneira, com um encadeamento de gambiarras para que nunca tenhamos de enfrentar os problemas centrais. Mas quem é louco para se preocupar com a qualidade da formação, quando o governo não se preocupa sequer em resolver a greve e devolver a universidade ao seu funcionamento?